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segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Crônicas da Saúde: Caso perdido

 Este poderia ser mais um relato de um caso perdido, como tantos outros que nos deparamos nos noticiários sensasionalistas. E foi essa a impressão que tive quando fiz a primeira visita domiciliar a uma mulher grávida em uma ``biqueira`` (casa de protituição e consumo de drogas), na favela em que atuo como Agente Comunitária de Saúde. Foram cinco visitas até o meu primeiro contato direto com ela, que me recebeu em trajes íntimos, ainda sob o efeito da droga e do álcool, consumidos durante a noite de trabalho às margens da rodovia em que fazia programa. Ostentava uma barriga que sugeria aproximadamente cinco meses de gestação de mais um filho sem pai, filho da Raposo Tavares, como elas mesmas definem as crianças que são concebidas nos programas feitos nas rodovias.
Foi com muita compreensão e carinho que a abordei, pois já sabia, por intuição, que ali estava um grande desafio profissional a ser enfrentado. Eu lhe fiz poucas perguntas e ofereci a minha companhia até uma Unidade de Saúde da Família pra uma consulta de pré-natal. Não tive sucesso, porém consegui que ela aceitasse minha visita para acompanhar a gestação, desde que tivesse autorização do dono  da ``biqueira``.
E lá fui eu negociar com o traficante a permissão.
permissão concedida, voltei no dia seguinte, à tarde, para que ela tivesse tempo de se recuperar dos excessos da noite.
Novo convite, dessa vez, uma resposta positiva. Um lampejo de esperança. Apesar de não saber exatamente o tempo da gravidez, ela queria ouvir o coração do bebê, e eu me apeguei nesse desejo para levá-la à Unidade.
Às duas horas da tarde estava em seu portão com duas sacolas na mão. Uma de comida e outra de roupa, pois ela se queixava de fome e de não ter o que vestir para ir à consulta. Depois de um banho no vizinho e de comer o pão que eu havia levado, ela se vestiu e saiu sob o olhar curioso de toda uma rua que acreditava ser ela realmente um caso perdido.
Ouvimos o coração do bebê e essa história poderia começar daqui, pois foi nesse exato momento que eu tive certeza de que ela mudaria. Foi atendida pela enfermeira e revelou, enfim, o seu verdadeiro nome. Nascia ali uma cidadã brasileira. Aceitou que agendássemos os exames. Sentiu-se grávida pela primeira vez desde que concebeu aquela vida.
Na manhã seguinte, colheu sangue dentro da ``biqueira``. Eu estava lá, na hora marcada e com a autorização do traficante, que não me via como uma ameaça aos seus negócios. Também cheguei cedo no dia em que eu a levaria para fazer a primeira ultrassonografia, mas ela foi mais rápida e já me aguardava no portão. Foi a primeira vez que não precisei chamá-la, ela já esperava por mim. Naquele dia choramos juntas quando vimos as imagens, que mais pareciam borrões na tela do aparelho de ultrassom. Maria Vitéria chupava dedo dentro da barriga pontiaguda do meu ``caso perdido``. Maria Vitória foi o nome que escolhemos no momento em que descobrimos que uma menina viria ao mundo em mais mais ou menos 13 semanas.
Comprei pão e a levei de volta à ``biqueira``, não tínhamos outra opção. Mas eu sentia que dentro dela algo havia mudado e não seria ali que teria sua filha. Por isso não me surpreendi quando, na manhã seguinte ao ultrassom, instalou-se na casa de uma amiga e permaneceria lá até que sua filha nascesse.. Ela estava mudando, queria ser mãe. Querendo ser gente, como ela mesma dizia. E eu acreditava, tinha que acreditar, mesmo sabendo que das drogas ela ainda não abriria mão.
A sífilis diagnosticada nos exames exigiu da Equipe ação imediata, porém não foi fácil convencê-la a receber o tratamento doloroso para combater a doença, e o parto aconteceu antes que esse tartamento fosse concluido. O que obrigou tratarmos Maria Vitória de sífilis congênita por 14 dias. Foi difícil convencê-la a permitir que seu bebê permanecesse hospitalizado para receber tratamento, mas o instinto de mãe é soberano. Então ela o acompanhou até o dia da alta, de onde elas saíram direto para uma Casa Abrigo Municipal.
Dez dias depois, mãe e filha, portando todos os documentos providenciados pela Assistencia Social, entraram em um carro do Conselho Tutelar e partiram. Não me despedi delas, não pude. Mas a alegria de saber que estavam a caminho de casa, para reencontrar a família, deixada há muitos anos por causa das drogas, ainda guardo no coração. Meu caso não era mais perdido. Hoje, nove meses depois, mãe e filha moram em uma cidadezinha no Estado do Paraná e estão lutando com a vida. Estão se saindo bem.
Ela está aprendendo a ser mãe da Vitória. Não usa mais drogas, não se prostitui, cuida de seu bebê, que cresce como toda criança deve crescer. E eu aprendi que não existem casos perdidos, enquanto acreditarmos  que com muita paciencia, perseverança e muito trabalho, nós, Agentes de Saúde, podemos fazer Saúde da Família.
OBS: Relato à Revista SAÚDE DA FAMÍLIA 25, publicação do Ministério da Saúde, da Agente de Saúde Cátia Auxiliadora Ribeiro, da ESF Progresso, da Secretaria de Saúde de Assis, São Paulo.

Atualmente o Brasil conta com o número de 204 mil ACS atuando nas zonas urbanas e rurais de todo Brasil, imagine cada ACS com uma história como essa?


2 comentários:

  1. Parabéns a estes agentes de saúde que são verdadeiros soldados da paz e do amor!
    Ótima matéria!
    Realmente, o caso só está perdido quando deixamos de acreditar!

    Forte abraço...

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  2. Parabéns...realizam um trabalho humanitário, levando saúde e bem estar em todas as regiões do Brasil.

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